Estudos Culturais uma abordagem prática
Organizadora: Tatiana Amendola Sanches
Editora Senac
Na Livraria Cultura R$ 39,90
Tecnologias a serviço da multidão: novas fronteiras de um Estado em Crise
O conceito
parte da ideia de que o Estado, pensado como elemento estruturante de uma nação
forte e unificada, não mais corresponde a um correto entendimento de um mundo
globalizado. Essa forma de organização encontra inimigos que constantemente o
enfrentam a partir de estruturas de organização em rede que irão agir por todos
os lados. Um exemplo de conflito dessas forças ocorreu na França no ano de
2010. O presidente Nicolas Sarkozy decretou a expulsão de centenas de ciganos
romenos e búlgaros que viviam em situação irregular em agosto. Os imigrantes
seriam, segundo o governo francês, os responsáveis pelo aumento dos índices de
violência no país. Os protestos foram imediatos e uma rede que envolvia mídia,
ONGs, organismos internacionais (ONU, Comissão Europeia) e autoridades romenas
e búlgaras começou a atacar o governo francês. Em seguida, no mês de setembro,
num ataque mais direto, ocorre uma ameaça de bomba na Torre Eiffel, o que faz
com que o monumento seja evacuado pelas autoridades.
Nesse exemplo,
observamos vários inimigos do Estado: os movimentos populacionais, as redes de
comunicação, os organismos internacionais e o terrorismo. Da mesma forma como
esses elementos enfraquecem a ideia de fronteira, as tecnologias de comunicação
também vêm questionando a delimitação e controle muitas vezes impostos pelos
Estados. Segundo Hardt e Negri (2005, p. 13), "o desafio apresentado pelo
conceito de multidão consiste em fazer com que uma multiplicidade social seja
capaz de se comunicar e agir em comum, ao mesmo tempo que se mantém
internamente diferente": O agir em comum proposto pelos autores tem
ganhado corpo em diversos acontecimentos recentes que envolveram a organização
da população contra o Estado. Os cidadãos desses países vêm usando as tecnologias
de comunicação para se desvencilhar dos controles do governo. Eles produzem
conteúdo controverso e subversivo e têm como apoio uma ampla rede de usuários
localizados dentro e fora das fronteiras de seus países e que dá suporte às
suas produções, possibilitando maior visibilidade. Veremos a seguir alguns
desses casos.
Colaboração, redes sociais e a luta contra o Estado
As redes
sociais criadas pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação digital vêm
sendo motivo de reflexão para diversos campos da cultura, principalmente no que
diz respeito ao potencial de produção e transformação dessas redes. O teor dos
discursos é otimista em sua maioria, sustentado pela ideia de que em tais redes
cria-se o campo ideal para a colaboração entre os indivíduos participantes, o
que intensificaria, entre outras coisas, sua participação política.
O projeto de
valorização da colaboração como campo de ação política não é novo. Ele está
inserido na história da cultura e apresenta a colaboração como alternativa ao
discurso unificado, autoritário e pouco criativo. Colaborar significa
multiplicar as vozes e incentivar um diálogo cujo resultado final pode se dar
na forma de produtos culturais. Em diversas instâncias ao longo da história da
cultura observamos grupos que se uniram em função do compartilhamento de
determinadas ideias. Tais grupos criaram redes de comunicação que
possibilitaram o fortalecimento do grupo e o sentimento de pertença naqueles
que descobriam nos outros a existência de ideias similares.
O
desenvolvimento dos fanzines é emblemático neste caso. O termo refere-se às
revistas criadas muitas vezes à mão e com poucas ferramentas tecnológicas, com
baixa tiragem e circulação em espaços alternativos. Muitos dos títulos
propunham dar voz àqueles que não encontravam lugar na mídia oficial, como os
fãs de ficção científica, os punks e tantos outros outsiders. Por meio da
circulação dos fanzines, os autores se identificavam e iniciavam a colaboração
em rede por meio de troca de cartas. Entre os inúmeros exemplos que poderíamos
citar de colaboração na arte, temos os coletivos que mostraram a força política
que a criação em conjunto pode acarretar, além da exploração de recursos que
chamassem a atenção para suas causas por meio de performances criativas e
ousadas. Como um último exemplo, vale lembrar que todo o discurso em torno do
desenvolvimento do software livre está centrado na ideia da colaboração entre
pares, na divisão de conhecimento e no compartilhamento de ideias.
Portanto, o
que as redes sociais de comunicação digital apresentam como novidade não é a
colaboração em si, mas uma transformação no uso do coletivo como força e
sustentação. Elas proporcionam a troca de informações de forma muito mais ágil
do que antes e por essa razão aceleram a organização dos grupos, motivam
conspirações, instigam a proteção mútua. Quando o motivo que aciona o coletivo
é a opressão do Estado, instala-se nessas redes um campo de tensão que
contrasta a estrutura rígida dos governos com a dinâmica e a fluidez das redes
de comunicação digital.
Os
acontecimentos envolvendo as revoluções populares contra os poderes do Estado
no Oriente Médio (Irã) e no norte da África (Tunísia e Egito) foram apontados
como movimentos que tiveram maior impacto em função do uso de ferramentas de
comunicação como o Twitter, o Facebook e o Flickr.
Em todos os
casos, observamos a luta dos cidadãos por reformas contra estados ditatoriais e
retrógrados que controlam economias frágeis e deficitárias. Em 2009, no Irã,
ocorreu a chamada "Revolução Verde", em referência à cor do partido
de oposição que perdeu as eleições para Mahmoud Ahmadinejad, cuja vitória foi
questionada em função de possíveis fraudes ocorridas no processo eleitoral.
Durante os protestos, a internet foi usada para organizar os atos e espalhar
vídeos caseiros das manifestações, uma vez que a maioria dos jornalistas
oficiais já tinha sido expulsa do país ou proibida de trabalhar. Na opinião da
mídia e de alguns autores, o Twitter foi o grande responsável pela dimensão que
os protestos tomaram no país.
Entre o final
de 2010 e o começo de 2011, mais dois protestos tomaram conta das ruas, dessa
vez no norte da África. Na Tunísia, os protestos começaram a partir do dia em
que o jovem desempregado Mohamed Bouazizi, que fora impedido de vender vegetais
nas ruas pela polícia por não ter licença para trabalhar, ateou fogo em si
mesmo. O ato bastou para desencadear o descontentamento geral da população. O
país entrou numa crise política sem precedentes e que acabou derrubando o
presidente Ben Ali, no poder havia 23 anos. Novamente, observou-se o uso
intenso de ferramentas de comunicação digital, como os celulares e as redes
sociais.
Inspirada
pelos acontecimentos na Tunísia, a população do Egito também tomou coragem para
sair às ruas e protestar contra o ditador Hosni Mubarak. A situação no Egito
foi mais caótica, uma vez que os manifestantes se dividiram entre os grupos que
apoiavam e aqueles que eram contra o governo. Essa divisão relaciona-se com o
jogo de poder que está por trás do controle dos aparatos de comunicação,
evidenciando um campo em que não opera simplesmente a espontaneidade das redes
sociais, mas estratégias de poder mais diretas.
(...)
Conclusões
Procuramos ao
longo deste artigo mostrar que a instituição do Estado passa por uma crise que
coloca em questão seu papel nas relações econômicas, sociais e culturais no
mundo contemporâneo. Forças diversas têm agido de forma a atenuar o papel do
Estado como entidade mantenedora de uma parcela de território e de um
nacionalismo evidenciado no âmbito político e cultural.
Dos diversos
processos que essa transformação acarreta, chamamos a atenção para a produção
cultural que se dá por meio das tecnologias de comunicação digital. Percebemos
que as mesmas dão voz a uma multidão que funciona sob outra lógica que se
desvencilha de conceitos políticos clássicos como nação e território. Ela
trabalha sob a ordem colaborativa e nos diz que o território nacional já não é
suficiente para dar conta de seus processos de criação. Além disso, a
circulação de informação por meio das novas tecnologias provoca e instiga as
populações envolvidas nos casos apresentados, mostrando seu poder de criar
instabilidades, mesmo que momentâneas, sobre os aparatos de controle. Através
de soluções diversas observadas nos países citados, verificamos que o conflito
local-global se resolve com a proliferação de identidades particulares que
exaltam o potencial criador de grupos agindo em colaboração por meio das
tecnologias. Ao mesmo tempo em que são singulares em suas causas locais, tais
identidades exploram o poder global por meio da publicação de textos e imagens
por eles produzidos. Seus interesses locais se fortalecem com o uso de conexões
globais. Em contrapartida, o Estado e o nacionalismo perdem espaço. A multidão
deseja mais que o nacional. Ela almeja o mundo e a rede.
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